sábado, 25 de julho de 2009

ANTROPOLOGIA COM SAMBA DÁ EM MALANDRAGEM

Em época de dissertação, uma das maiores diversões à disposição dos alunos é quando com alguma sorte eles encontram, entre os trabalhos antigos arquivados, algum que lhes brilhe os olhos. Em Antropologia eu já me preparava psicologicamente pra fazer uma imersão na vida política, sexual ou ritualística de nativos em ilhas do Pacífico, coisa que não me daria assim tanto tesão, quando me deparei com essa maravilha: “Samba: ritual e conformidade na vida cotidiana”. Quando comecei a ler e entendi que a pergunta central da tese de mestrado tinha sido extraída de uma letra do Cartola, pirei de vez! “Como pode Mangueira cantar?”**. Bom, daí em diante foi um deleite atrás do outro.

Basicamente, o autor se propõe a explorar o caráter de conformidade que tem na cultura brasileira, valendo-se da curiosidade pelas letras românticas ou resignadas de uma música que nasceu no morro, onde há pobreza, violência e sofrimento. Com tanto problema, “como pode Mangueira cantar?” é o que intriga. Por que o samba, naturalmente, não nasceu pra ser música de protesto, dadas as circunstâncias em que se encontravam seus primeiros compositores? Pra resumir o papo com o que interessa, é através da figura do malandro, atrelada ao contexto do carnaval e do samba, que se faz entender de onde vem essa aparente ‘conformidade’. O malandro, sujeito de origem simples que escolheu viver à margem da sociedade pra se virar na vida, não tem interesse nenhum em desafiar o sistema. Ele se vale do sistema para continuar dando o seu jeitinho. “O malandro é o barão da ralé”***, disse o Chico. É da sua rede de relacionamento, a parte podre do sistema (ralé), que o malandro tira seu combustível pra conseguir favores, burlar o esquema e assim se dar bem. E ele é, por definição, alguém que nunca vai andar na linha, nunca vai trabalhar, pagar imposto ou viver honestamente. “Se eu precisar algum dia/De ir pro batente/Não sei o que será/Pois vivo na malandragem/E vida melhor não há”**** (Paulinho da Viola).  O samba, cuja história tem muito em comum com a figura do malandro, nasceu no Rio no início do século XX, a partir de encontros e batuques do candomblé, por influência da rica cultura negra. O primeiro samba gravado, vocês sabem, foi de Donga e Mauro de Almeida, “Pelo Telefone”, de 1916. O ritmo era inicialmente proibido pelo governo brasileiro, mas ganhou simpatia depois que o Getulio Vargas liberou geral, num ato um tanto populista, e ele então se misturou com o gosto burguês, graças à presença nas rádios. Como a figura do malandro, esse mesmo samba tampouco tem a pretensão de mudar alguma coisa. Ele existe para enaltecer a criatividade que todos esses compositores têm, valorizar a sua infinita inspiração, agradecer a ginga da mulata, a beleza do Rio, a vista do morro e a graça de estar vivo (e de ser brasileiro). No samba, como na malandragem, quem é que ta precisando reclamar aqui???

Fico pensando se gringo entende isso. Acho impossível, assim como também é difícil entender de verdade o Brasil. A gente reclama muito do país. Claro que não se pode ficar conformado, como sugeriu o autor da dissertação em relação às letras do samba, mas também acho que a gente não reclama das coisas certas. Há uma beleza no jeitinho brasileiro, no jogo de cintura, no improviso, na criatividade... que se a gente soubesse usar faria toda a diferença! Eu sinto o país todo jeitoso, às vezes na lama, mas sem perder o rebolado e com uma habilidade única pra não se dar assim tão mal, como nessa letra do Chico: "Sambando na lama de sapato branco, glorioso (...) sambando na lama sem tocar o chão"*. O Brasil não tem que copiar nem um tipo de modelo, ele tem que aceitar a sua essência e tirar bom proveito dela. O Brasil nasceu pra dar certo (favor rever seu conceito de “certo” nesse caso) e, por alguma razão, tem gente adiando isso há bastante tempo.

*Chico Buarque - "Cantando no toró"

**Cartola - "Sala de Recepção"

***Chico Buarque - “A volta do malandro”

****Paulinho da Viola - “O que será de mim”

Foto: Flickr

4 comentários:

  1. Que pérola!! Daqui, saudades de quem tem saudades daqui.

    Beijos

    Gui

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  2. Mais um gol, daqueles que só brasileiro(a) faz!
    Mulher, você arrebentou com esse texto... acho que só você pode imaginar o quanto eu gostei! E quanto que ler, ambos os trabalhos!

    E como não pode faltar, vou terminar com uma que me inspira e, que merece 'repeat' sempre e que é justamente sobre o samba.
    Aí vai, espero que te inspire ainda mais:

    "Quem acha vive se perdendo
    Por isso agora eu vou me defendendo
    Da dor tão cruel desta saudade
    Que, por infelicidade,
    Meu pobre peito invade

    Batuque é um privilégio
    Ninguém aprende samba no colégio
    Sambar é chorar de alegria
    É sorrir de nostalgia
    Dentro da melodia

    Por isso agora lá na Penha
    Vou mandar minha morena
    Pra cantar com satisfação
    E com harmonia
    Esta triste melodia
    Que é meu samba em feito de oração

    O samba na realidade não vem do morro
    Nem lá da cidade
    E quem suportar uma paixão
    Sentirá que o samba então
    Nasce do coração."

    Aquele abraço,
    Paulinha

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  3. Ahhh... e tem Vinicius.
    "Fazer samba não é contar piada"
    ;)

    BEIJOS MIL!
    Paulinha

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  4. Parece que foi Tom Jobim quem disse:

    "O Brasil não é para principiantes. Este é um país em que as prostitutas gozam, os traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou não é um país de cabeça para baixo?"

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