quinta-feira, 16 de julho de 2009

OS OUTROS

Experimente dar uma voltinha em Londres evitando passar pelas atrações turísticas manjadas. Depois de algumas horas andando, você vai se perguntar que cidade é essa. Se estiver na Brick Lane corre até o risco de achar que desceu em Mumbai. Em Londres hoje é difícil encontrar os britânicos. Isso aqui parece uma Babel, uma mistura de línguas e etnias que se declara muito coesa, receptiva e multicultural, mas que nas entrelinhas e no dia-a-dia se mostra bastante confusa e parece mais imposta do que espontânea. Apesar de admirar a convivência das culturas, o pretend play é que me incomoda um pouco (e o assunto ‘Jean Charles’ é argumento suficiente pra isso). Aparentemente todos convivem bem e é mesmo admirável a capacidade britânica de incorporar outras culturas, coisa da qual eles se orgulham muito, por terem sido donos do maior império que a exploração além-mar produziu. Você já parou pra pensar em quantos países foram colonizados pela coroa britânica? Eu só me dei conta quando percebi o tanto de gente que tem a vida bem facilitada pra morar e trabalhar na Inglaterra: indianos, norte-americanos, sul-africanos, australianos, neo-zelandeses, guianenses, e lá vai cacetada. Minha primeira reação foi “então por que nós brasileiros não podemos ter um passaporte português, caramba”? Passada a raiva, recuperado o juízo, comecei a tirar proveito desse estranhamento e resolvi, não por acaso (a antropologia que o diga), emprestar o olhar do colonizador pra entender o que eles pensam da gente, povos colonizados e atuais imigrantes.

O primeiro passo da minha experiência foi dado via antropologia mesmo. Uma das primeiras coisas que aprendi com ela é que não se fala em sociedade “primitiva” sem usar as aspas pra designar o termo. No início do século vinte, todo cientista social que se prezasse passou a recusar as teorias evolucionistas (aquelas que basicamente enxergavam a sociedade ocidental como ‘evoluída’ e as “primitivas” como atrasadas). Foi aí que o etnocentrismo (= tomar o olhar ocidental como ponto de partida pra julgar todo o resto) passou a ser evitado a qualquer custo. Fica feio classificar os outros de “primitivos” só porque a tua sociedade te parece mais evoluída. Quais são os critérios pra definir grau de evolução? Se lembro bem do Darwin, todas as espécies existentes hoje no planeta são igualmente evoluídas porque passaram pela seleção natural e são sobreviventes. O que as diferencia é só o seu papel na cadeia alimentar, não seu grau de evolução. No caso das sociedades, será que leis, ordem, modernização ou tecnologia são determinantes de grau de evolução? Bullshit. A coisa é mais complexa do que parece e a intenção de evitar esse pré-julgamento é hoje uma premissa nas ciências sociais. Por exemplo, numa obra do Jack Goody de 1977 (A domesticação do pensamento selvagem) ele cita Parsons, que em 1966 pergunta assim: “Por que então o avanço para a modernização não ocorreu primeiro em nenhuma das civilizações orientais avançadas (e sim no ocidente, referindo-se à Revolução Industrial Inglesa)”? Ora meu caro, perceba que a sua pergunta, em si, já ta carregada de preconceito. Goody aponta em Parsons a oposição binária entre o “nosso” tipo de sociedade e o “deles”. 

Entendido isso, acabei caindo em mais uma pergunta. Repare que os povos dos países colonizados estão invadindo os seus colonizadores. Pelo menos é o que os números de imigração mostram, vocês sabem. Não é pra menos, depois de ter os recursos super explorados pelas metrópoles da época, não restou muita alternativa às ex-colônias senão ir buscar essa riqueza de volta, hoje em forma de emprego e melhores salários. Pois bem, eu pergunto com base no exemplo do que eu presencio com tantos imigrantes legais em Londres, que passaram a ser parte da identidade britânica e sentem-se em casa: “eles” estão se tornando “nós”? Eu que sempre me considerei imersa em cultura ocidental venho pra Londres, a capital mundial do ocidente, e sou recebida pelos indianos (!) na terra deles (!!!). Deles? What-the-hell? Então esse olhar ocidental sobre o mundo, de raízes no pensamento iluminista, vai deixar de ser unilateral? Que efeito isso tem na cabeça e no comportamento dos ex-donos do mundo, dos ex-impérios? A soberania norte-americana ta dando lugar ao potencial chinês. Gosto de pensar também que a internet tem papel fundamental na inversão do olhar. Antigamente tudo o que era veiculado nos meios de comunicação tinha origem em algumas restritas fontes emissoras, que eram os donos dos veículos ou os produtores de conteúdo (trabalhando pra esses mesmos donos). A informação ia dos poucos produtores para uma extensa audiência, portanto. Hoje qualquer integrante da grande massa pode produzir conteúdo via internet (user generated content), como estou fazendo aqui, e eventualmente pode atingir milhões de pessoas. Isso muda tudo. Altera a lógica da opinião pública, dá mais poder ao indivíduo isoladamente, derruba barreiras de tempo e espaço e, por que não dizer, embaralha de vez a direção do olhar de “nós” sobre “eles". ‘Os outros’ passam a ser uma entidade ainda mais subjetiva, quiçá perigosa de se assumir como sendo diferente ou externa a nós. Quem disse que os outros são tão ‘outros’ assim? Só pode ter sido alguém que tenha ficado preso lá no longínquo século vinte... livre-se logo dessa velharia! :-o

Foto.: Flickr

2 comentários:

  1. Morena,
    Quantas coisas, queria que isso tudo fosse uma conevrsa. Mas não é, e eu tenho muito trabalho pela frente. De qq forma, apesar de não saber como terminaria prosa, começaria por "O inferno é o outro." - que me parece uma questão da identidade humana quase tão grande quanto o fato de o homem saber que vai morrer.
    (...)

    Adorei!
    Beijos
    Paulinha

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  2. Palavras da minha amiga Gabi que não posso deixar de aproveitar:
    "Como ensina a professora de Antropologia Rita Segato, da UnB, todo exercício de observação do outro só vale mesmo se servir de espelho."
    Em: http://taolongetaoperto.wordpress.com/2010/07/19/em-crise-com-os-petiscos-da-paz/

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