segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

DESAPEGO



Vai embora?
Desapega.
Pôs sua história na mala?
Ah bom, sem passado não se constrói nada.
Tem saudade, né?
Escuta música, dança, festeja, bebe, curte, aprende a amar o novo.
De quem ficou? Ah, guarda a lembrança, um dia você reencontra.
Quando você volta, já sabe?
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Certeza, você pega o ritmo rapidinho de novo.
Medo de estranhar?
Pode se preparar, nada vai estar no mesmo lugar na volta.
O que se faz com isso?
Oras... nada, eu já disse, desapega.
Quem você gosta vai ter mudado,
Quem te inveja vai ter te traído,
Quem te ama vai ter te esperado.
E tudo passa a encaixar melhor.
E a vida que se leva no retorno?
Nuca é a mesma, levantou e saiu de fininho enquanto você ainda sonhava.
Por isso, meu amigo, aproveite a faxina que a ausência fez na sua casa e se poupe de ter que cuidar do velho, do excesso, do falso.
Agora, registra o que você viu quando chegou e nunca esquece.
Esse pouco de verdade que sobreviveu na superfície é tudo o que você tem.
A boa notícia: você não precisa de nada além.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A FIM DE VOLTAR


foto flickr

Foi tudo um sonho. Como eu previa, a sensação era de ter acordado de uma longa noite. De volta ao Brasil, a primeira impressão é de que nunca saí deste lugar. Sinto como se estivesse plantada à terra, uma muda trazida de volta à mata densa que é de árvores tropicais, aquelas que respiram em clima úmido e quente. Já me senti assim logo que pegamos a Marginal, saindo do aeroporto. Em casa, os espaços eram tão grandes comparados aos modestos cômodos londrinos que meu pulmão até expandiu, como se eu fosse respirar diferente. As duas janelas do quarto eram tão grandes, mas tão grandes que cheguei a estranhar a claridade. Minha cama então... era uma piscina inteira de maciez e espaço livre, de onde nem a ponta dos meus pés escapava no comprimento. As rádios tocam samba. Do lado de fora está o verão. Isto aqui é o paraíso, tive certeza. Não à toa meus amigos brincavam que "A fim de voltar" * sempre foi minha música: "Estou a fim de voltar e não sei se devo ou posso".

Passada a primeira semana, as coisas mudam um pouco. A viagem deixa de parecer um sonho comum e passa a lembrar a ficção científica. Você lembra de ter ouvido alguma vez, por obra da física quântica, que se fosse possível viajar no tempo a gente voltaria para o presente com idade conservada, porém as pessoas na Terra teriam envelhecido? É aquele papo de que pra quem viaja na velocidade da luz o tempo biológico passa diferente do tempo daqueles que ficaram, então a gente voltaria no ‘futuro’ mas com a vivacidade e o corpo de quando saímos, pois para nós 1 ano significou 10 anos na Terra. Pois bem, começo a estranhar as coisas daqui. Não gosto mais de dirigir. Minha preguiça é tanta que apelei pro transporte público paulista e virei passageira de ônibus. Profissão? Preciso dar uma diversificada, porque não consigo pensar em mim ocupando o mesmo cargo no mesmo tipo de ambiente. Continuo amando a noite, mas com muitas restrições: é longe? É caro? É lotado? Passei a amar São Paulo. Sim, porque antes eu até gostava, mas amor mesmo só tinha pelo Rio. Agora amo a avenida Paulista, outro dia fui de ponta a ponta a pé, do cinema HSBC Belas Artes ao sorvete de Miski do Alaska, não sem antes tomar chopp escuro no Opção, atrás do MASP. Amo a comida, o serviço, a excentricidade cultural e social que tem nesta cidade. Passei a não tolerar o trânsito, nem com música boa ou exercício de paciência. Amo os paulistas, odeio a corrupção que impede minha cidade de ser fantástica.

Tenho visto a vida em câmera lenta. Não que o ritmo tenha desacelerado por aqui, mas parece que o número de frames que compõe este filme, o número de ‘quadros por segundo’, tenha diminuído muito. Meus velhos amigos do Brasil, ainda não os compreendo de novo. Meus novos amigos de Londres, ainda não os libertei do meu comprometimento. Amo o caos, o verão e a idéia de que no ano que vem vai ter carnaval. Mas começo a inverter a nostalgia, deixando Londres intacta num pedacinho especial de saudade que ficou conservado numa câmara de tempo, protegida por flashes de lugares especiais e sons de risadas agora tão familiares. Desta cidade que eu via passar diante dos olhos no ritmo contemplativo da música do Caetano**, tenho esses flashes de memória acompanhados de uma alegria que se sabe solitária, que não é possível dividir com ninguém aqui, pois ninguém iria compreender. Quando a lembrança vem, eu só dou um sorriso de canto de boca e guardo isso pra mim. Acabei por me tocar de que o tempo, a maior ilusão da humanidade, é como uma substância reguladora, um hormônio. O tempo seleciona e julga sozinho o que te faz feliz e você só percebe a ação dele quando ele já passou, danado. Quero muito que passe o tempo que me permita voltar um dia pra lá, dessa vez com olhares de veterana, como quem se sente confortável numa segunda casa, mesmo sabendo que nada vai estar exatamente igual, com as mesmas pessoas e o mesmo espírito explorador. Sei que voltar no tempo é uma viagem possível em sonho e fico pensando que se eu fosse de novo pra Londres talvez parecesse que eu nunca saí. Quero voltar só para saber como é o gosto de pisar no passado, mesmo sabendo que 2009 só se pode ver novamente conservado em formol, quer dizer, conservado em tempo.

E por favor, não me belisca.

* A fim de voltar - Tim Maia
** London, London - Caetano Veloso (por Cibelle)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

BERLIM, LITUÂNIA


A capital alemã e o país báltico têm mais em comum do que pode soar numa primeira impressão. E a relação é simples: o resquício do socialismo. Me perguntaram o que eu achei dessas viagens e, de tanto relatar as impressões, acabei encontrando um traço forte em ambos: os contrastes.

Enquanto Berlim foi uma cidade literalmente dividida em ocidental e oriental (quase 30 anos de muro), a Lituânia foi parte da União Soviética por 50 anos. Hoje essa história ainda é muito presente, tanto na paisagem quanto no comportamento das pessoas. Primeiro, em ambas a gente encontra um monte daquelas mulheres loiras de cabelo curto e com postura meio masculina, denotando uma independência e uma força que pareceu ser questão de sobrevivência em tempos comunas. Duras, sérias, objetivas e bem pouco vaidosas, elas são um exemplo vivo e ambulante de como deve ter sido repressor e castrador o tempo da presença soviética. Em Berlim, particularmente, é curioso mas ao mesmo tempo encantador o contraste entre o ex lado oriental e o ex lado ocidental: o primeiro é charmoso, peculiar e livre, enquanto que o segundo lembra o centro comercial de Londres... boring, sem novidade. Impressiona, no ex lado oriental, como o espaço urbano é tomado de arte, grafites nos muros, casas abandonadas viraram reduto de artistas independentes expondo suas obras e nas ruas é raro ver duas pessoas vestidas com peças parecidas: tudo é muito criativo e um tanto subversivo. Acho até que uma comparação válida é dizer que a Berlim de hoje abriga a mesma ousadia e novidade que houve em Londres durante o movimento punk, na década de 70. Mas ao mesmo tempo, paira no ar uma aura 'nazi', como se alguma força invisível ainda nos observasse, tipo o Big Brother de 1984 (George Orwell). Estranho, amedrontador e fascinante ao mesmo tempo. Já em várias cidades da Lituânia o contraste não é nem sutil, é bem óbvio e agressivo. Casas antigas tradicionais são de madeira e pintadas em diversas cores, dando ao lugar a ambientação das histórias infantis que nos contaram, como Chapeuzinho Vermelho ou Branca de Neve, com raposa, esquilo, cogumelo e blue berry (um tanto esquisito para crianças tropicais). Mas logo ali do outro lado da rua tem prédios feios, duros, austeros e caindo aos pedaços, da época da URSS. Ficou claro que os soviéticos impuseram o que é feio, triste e indiferenciado. Pena. Duas religiões dividem o espaço físico através da presença massiva de seus templos: Católica Romana e Cristã Ortodoxa Russa, além da presença de mesquita e sinagoga. A Católica, curiosamente, tem muitas imagens de Cristo acompanhadas de entidades pagãs, uma loucura. Aliás, o paganismo é muito coerente num lugar que ainda hoje tem cerca de 30% de cobertura florestal, onde a ligação com a natureza é fortíssima. É um país de fazendeiros de subsistência e, arrisco dizer, de bruxas, já que a presença do feminino nessas religiões é bem marcante (lembre-se de que as grandes religiões monoteístas abafam a energia feminina, são machistas). Na capital, Vilnus, parece que as meninas, dessa vez bem diferentes daquelas de cabelo curto sem vaidade, estão ostentando com orgulho a liberdade de ser loira, alta, linda e patricinha.

Enquanto me perguntei porque o espírito comunista ainda sobrevive em alguns hábitos e no espaço público, deduzi que deve ser difícil para aquelas pessoas se libertar de um fantasma tão repressor. Depois fiquei pensando que o temido 'Big brother' poderia representar, na verdade, um grande pai. E ninguém gosta de ficar órfão de pai. Bom, sei lá, são lugares muito exóticos para uma brasileira permissiva, festeira e que só conhece o contraste do rico e do pobre, diferenças que ensaiam desaparecer completamente em época de carnaval. O Brasil tem seus contrastes naturais, culturais e econômicos, mas tem uma unidade ideológica que é invejável. O Brasil é feliz e sabe disso.

* foto do visor do celular do Toledo, meu companheiro de viagem a Berlim

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

WITH A LITTLE HELP FROM MY FRIENDS

foto: Mantvidas

Pode soar repetitivo falar de amizade depois do post anterior, mas esse pra mim é um tema incansável. Dissertação entregue, um restinho de verão ainda dando sopa... setembro é mês de viajar. Mas não farei esquema mochileiro 'low budget' dessa vez, pois com menos dinheiro e mais amigos é possível se levar uma vida 5 estrelas, da Liguria, na Itália, à Lituânia. Foi então esse o roteiro que eu fiz.

Depois de 1 ano ter passado voando, fica evidente como a gente mudou. Pode parecer exagero mas não é: um mestrado + a Inglaterra + low budget life te fazem uma pessoa MUITO melhor. O primeiro sinal disso é o nível da conversa que vc tem com seus amigos, culturalmente riquíssima e densa, não sei se porque se vive no meio acadêmico ou se é porque todo mundo fica mais sensível, mais maduro e mais filósofo neste contexto. O segundo sinal é o grau de proximidade com as pessoas. As amizades se fortalecem quando vc viaja com elas. Entre aquelas pessoas que você nunca vai deixar de amar pro resto da sua vida estão os amigos mais queridos que mochilam com você ou te recebem em casa. Nunca fui tão bem recebida em toda a minha vida (e olha que lastro receptivo de família árabe é difícil de igualar). E pra poder retribuir à altura, ficamos todos disputando esses anfitriões para uma futura visita ao Brasil, quando me esforço para convencer de que a gastronomia e a noite paulistanas fazem minha cidade valer à pena no roteiro, tanto quanto os paraísos carioca, nordestino e amazonense. Você vira um cidadão do mundo, se sente com poder pra fazer amigos nos quatro cantos e se empolga com a idéia da receber eles todos. Até já montei muitos roteiros futuros, esquecendo do detalhe de que estarei de volta ao mercado de trabalho e à rotina maluca quando eles vierem... porque isso é só um detalhe. Tamanho prazer em receber e trocar vem de uma convivência que só um ano como este, fora da realidade, pode te proporcionar. Eu costumava dizer que o hall onde eu morava virou no verão um grande acampamento de férias com os melhores amigos juntos. Desde o colegial eu não sei o que é isso. Tenho pena de que a gente não faça mais esse tipo de coisa na nossa rotina brazuca: raramente viajamos só com os amigos sem antes ter que planejar milianos. Não dividimos mais o chão do mesmo quarto, não provamos as comidas de todas as mães, não fazemos voto de amizade eterna, não andamos de mãos dadas com a melhor amiga... e tudo isso eu cansei de fazer nesse meu setembro. E posso jurar que 20 dias me fizeram uma pessoa diferente de novo. Voltando a Londres, to hospedada num casal de amigos fora de série e dei como meu endereço de correspondência a casa de um outro casal queridíssimo. A casa e a atenção deles é generosamente dividida comigo antes mesmo que eu tenha a chance de pedir. Portanto hoje não tenho nem endereço fixo mais, vivo dormindo na casa de um ou de outro dependendo da conveniência da balada, mas nunca me senti tão em casa!

Por isso que não existe solidão quando se cultiva bons amigos. Seus casamento pode um dia terminar, seus filhos vão crescer, seus pais um dia vão dessa pra uma melhor e seus irmãos não estarão mais do seu lado todos os dias. Já os seus amigos NUNCA perdem o posto. Como eu gosto de dizer, já que meu maior tesouro na vida sempre foi esse, "I get high with a little help from my friends"*. Tesekür ederim, grazie, ačiū, obrigada!

* With a little help from my friends - Beatles
Foto tirada pelo Mantvidas

sábado, 15 de agosto de 2009

HAPPINESS ONLY REAL WHEN SHARED





Tenho uma resposta pronta esperando para ser pedida. Do que mais gostei em Londres? Dos AMIGOS que fiz (ou mantive) aqui. Sem apelar pro clichê mas já apelando, confirmei minha crença de que na vida a melhor de todas as aquisições é a amizade. Se eu me virei pra aprender antropologia em inglês, foi porque conversei muito com pessoas, pedi a opinião delas, confiei-lhes meus medos e dúvidas nessa disciplina e contei com a sua parceria na hora de bolar estratégias pra estudar, memorizar, escolher, planejar. Se eu aguentei o inverno foi porque no quarto ao lado tinha uma lituana que parecia minha amiga de infância e na porta de quem eu batia até de madrugada quando queria contar peripécias. Se eu superei as decepções foi porque dei muita risada e não parei quieta em casa por conta dos meus amigos brasileiros, sempre os preferidos, sempre mantendo o humor, fazendo pão de queijo e marcando sarau de samba e bossa nova. Se este foi o ano mais intenso e divertido da minha vida foi por causa deles. Se existe algo que farei questão de cultivar é a amizade deles. "Happiness only real when shared" * é um dos maiores insights que um filme já me deu. Nada na vida tem graça se você não tiver com quem dividir a sua alegria. E tem um amigo meu peruano cujo amigo esteve aqui e fez um filminho que traduz a alegria de Londres quando chega a primavera. Claro que não é coincidência o fato de a beleza do filme estar em retratar a vida real dos amigos, como ele fez. A música também é dele (François Peglau). Ah, e reparem no que está escrito nesse muro atrás e à direita do cantor de rua.

* do filme "Into the Wild"

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

SEI QUE AINDA VOU VOLTAR

Porque o Brasil é o Brasil:

sábado, 1 de agosto de 2009

SERÁ QUE VOCÊ ME ENTENDE?

A difícil e excitante tarefa de entender o que se passa na cabeça alheia não é privilégio de planejador. Traduzir pensamentos em linguagem é naturalmente um desafio que desde sempre estimulou o ser humano a se virar com inúmeras técnicas, da mímica à agência de propaganda. Tente, por exemplo, imaginar como seria ter que traduzir pensamentos através de arte. É o que se pode conferir na exposição “Walking in my mind”, que está rolando na Hayward Gallery em Londres. Trata-se de “uma expedição ao misterioso processo criativo mental” de artistas plásticos. Dez artistas usaram de pintura a sinal de fumaça pra traduzir como é sua mente durante a criação (ou como eles gostariam que a gente acreditasse que ela é). E a gente anda lá no meio das instalações, como se estivesse naqueles brinquedos de parque de diversões, topando tanto com lata de refrigerante quanto com pornografia. O grande barato de viver a experiência de estar dentro da mente deles é reconhecer coisas que provavelmente também estariam na sua e tentar imaginar como você faria essa tradução. Um dos artistas, o Thomas Hirschhorn, declarou que a obra dele foi concebida com a intenção de criar condições para que aconteça ‘a atividade do pensamento’ por parte do espectador: ”quero provocar um diálogo ou um confronto na cabeça da outra pessoa”. Não tenham dúvida de que ele conseguiu.

Motivadas pela mesma pergunta, antropologia e psicologia já foram bem longe na tentativa de entender o pensamento humano, embora elas ostentem diferenças fundamentais. Enquanto a primeira tem uma preocupação mais coletiva e olha para o ‘ser social’, a segunda se volta para o ‘indivíduo’, procurando compreender seus processos mentais isoladamente. Não à toa, antropólogos e psicólogos costumam discordar bastante sobre particularizar demais (antropologia) ou generalizar demais (psicologia) uma verdade sobre o ser humano. Mas quando eles se entendem o resultado é muito interessante. Maurice Bloch, antropólogo professor na LSE (Londres), é exemplo vivo disso. Ele não teve a chance de passear dentro da cabeça de ninguém, como a exposição sugere que é possível, mas a sua produção acadêmica pode ser considerada fruto dessa tentativa, que é antropológica mas está cheia de insights da psicologia. Abordando a relação entre eventos, memória e narrativa, ele tenta provar que a transmissão do conhecimento, de geração para geração, não é só produto do pensamento mas também é causa. Afinal, nem tudo o que fica guardado aí na sua memória é 100% fiel aos acontecimentos, tem muita coisa que você confunde, muda, cria e passa adiante com outra formatação. Isso é criar história através de narrativa.

Depois da exposição e da universidade, te convido para um café e te faço uma pergunta: como você traduziria o que se passa na mente do seu consumidor? Se você está atento ao discurso das marcas e ao que declaram as pessoas que as consomem, em infindáveis grupos de pesquisa, você deve ser capaz de imaginar um ambiente “Walking in my mind” só com base nessa narrativas. Muito mais enriquecedor do que levar ao pé da letra o que o consumidor fala em sala de espelho. Penso no quanto ainda estamos presos a antigos padrões de pesquisa e de apresentação e às vezes tenho vontade de migrar para o mundo da arte pura, só pela certeza de que poderei traduzir melhor os pensamentos sem amarras de verba, prazos malucos, cliente muito conservador ou velhos hábitos. Será que você me entende?

sábado, 25 de julho de 2009

ANTROPOLOGIA COM SAMBA DÁ EM MALANDRAGEM

Em época de dissertação, uma das maiores diversões à disposição dos alunos é quando com alguma sorte eles encontram, entre os trabalhos antigos arquivados, algum que lhes brilhe os olhos. Em Antropologia eu já me preparava psicologicamente pra fazer uma imersão na vida política, sexual ou ritualística de nativos em ilhas do Pacífico, coisa que não me daria assim tanto tesão, quando me deparei com essa maravilha: “Samba: ritual e conformidade na vida cotidiana”. Quando comecei a ler e entendi que a pergunta central da tese de mestrado tinha sido extraída de uma letra do Cartola, pirei de vez! “Como pode Mangueira cantar?”**. Bom, daí em diante foi um deleite atrás do outro.

Basicamente, o autor se propõe a explorar o caráter de conformidade que tem na cultura brasileira, valendo-se da curiosidade pelas letras românticas ou resignadas de uma música que nasceu no morro, onde há pobreza, violência e sofrimento. Com tanto problema, “como pode Mangueira cantar?” é o que intriga. Por que o samba, naturalmente, não nasceu pra ser música de protesto, dadas as circunstâncias em que se encontravam seus primeiros compositores? Pra resumir o papo com o que interessa, é através da figura do malandro, atrelada ao contexto do carnaval e do samba, que se faz entender de onde vem essa aparente ‘conformidade’. O malandro, sujeito de origem simples que escolheu viver à margem da sociedade pra se virar na vida, não tem interesse nenhum em desafiar o sistema. Ele se vale do sistema para continuar dando o seu jeitinho. “O malandro é o barão da ralé”***, disse o Chico. É da sua rede de relacionamento, a parte podre do sistema (ralé), que o malandro tira seu combustível pra conseguir favores, burlar o esquema e assim se dar bem. E ele é, por definição, alguém que nunca vai andar na linha, nunca vai trabalhar, pagar imposto ou viver honestamente. “Se eu precisar algum dia/De ir pro batente/Não sei o que será/Pois vivo na malandragem/E vida melhor não há”**** (Paulinho da Viola).  O samba, cuja história tem muito em comum com a figura do malandro, nasceu no Rio no início do século XX, a partir de encontros e batuques do candomblé, por influência da rica cultura negra. O primeiro samba gravado, vocês sabem, foi de Donga e Mauro de Almeida, “Pelo Telefone”, de 1916. O ritmo era inicialmente proibido pelo governo brasileiro, mas ganhou simpatia depois que o Getulio Vargas liberou geral, num ato um tanto populista, e ele então se misturou com o gosto burguês, graças à presença nas rádios. Como a figura do malandro, esse mesmo samba tampouco tem a pretensão de mudar alguma coisa. Ele existe para enaltecer a criatividade que todos esses compositores têm, valorizar a sua infinita inspiração, agradecer a ginga da mulata, a beleza do Rio, a vista do morro e a graça de estar vivo (e de ser brasileiro). No samba, como na malandragem, quem é que ta precisando reclamar aqui???

Fico pensando se gringo entende isso. Acho impossível, assim como também é difícil entender de verdade o Brasil. A gente reclama muito do país. Claro que não se pode ficar conformado, como sugeriu o autor da dissertação em relação às letras do samba, mas também acho que a gente não reclama das coisas certas. Há uma beleza no jeitinho brasileiro, no jogo de cintura, no improviso, na criatividade... que se a gente soubesse usar faria toda a diferença! Eu sinto o país todo jeitoso, às vezes na lama, mas sem perder o rebolado e com uma habilidade única pra não se dar assim tão mal, como nessa letra do Chico: "Sambando na lama de sapato branco, glorioso (...) sambando na lama sem tocar o chão"*. O Brasil não tem que copiar nem um tipo de modelo, ele tem que aceitar a sua essência e tirar bom proveito dela. O Brasil nasceu pra dar certo (favor rever seu conceito de “certo” nesse caso) e, por alguma razão, tem gente adiando isso há bastante tempo.

*Chico Buarque - "Cantando no toró"

**Cartola - "Sala de Recepção"

***Chico Buarque - “A volta do malandro”

****Paulinho da Viola - “O que será de mim”

Foto: Flickr

quinta-feira, 16 de julho de 2009

OS OUTROS

Experimente dar uma voltinha em Londres evitando passar pelas atrações turísticas manjadas. Depois de algumas horas andando, você vai se perguntar que cidade é essa. Se estiver na Brick Lane corre até o risco de achar que desceu em Mumbai. Em Londres hoje é difícil encontrar os britânicos. Isso aqui parece uma Babel, uma mistura de línguas e etnias que se declara muito coesa, receptiva e multicultural, mas que nas entrelinhas e no dia-a-dia se mostra bastante confusa e parece mais imposta do que espontânea. Apesar de admirar a convivência das culturas, o pretend play é que me incomoda um pouco (e o assunto ‘Jean Charles’ é argumento suficiente pra isso). Aparentemente todos convivem bem e é mesmo admirável a capacidade britânica de incorporar outras culturas, coisa da qual eles se orgulham muito, por terem sido donos do maior império que a exploração além-mar produziu. Você já parou pra pensar em quantos países foram colonizados pela coroa britânica? Eu só me dei conta quando percebi o tanto de gente que tem a vida bem facilitada pra morar e trabalhar na Inglaterra: indianos, norte-americanos, sul-africanos, australianos, neo-zelandeses, guianenses, e lá vai cacetada. Minha primeira reação foi “então por que nós brasileiros não podemos ter um passaporte português, caramba”? Passada a raiva, recuperado o juízo, comecei a tirar proveito desse estranhamento e resolvi, não por acaso (a antropologia que o diga), emprestar o olhar do colonizador pra entender o que eles pensam da gente, povos colonizados e atuais imigrantes.

O primeiro passo da minha experiência foi dado via antropologia mesmo. Uma das primeiras coisas que aprendi com ela é que não se fala em sociedade “primitiva” sem usar as aspas pra designar o termo. No início do século vinte, todo cientista social que se prezasse passou a recusar as teorias evolucionistas (aquelas que basicamente enxergavam a sociedade ocidental como ‘evoluída’ e as “primitivas” como atrasadas). Foi aí que o etnocentrismo (= tomar o olhar ocidental como ponto de partida pra julgar todo o resto) passou a ser evitado a qualquer custo. Fica feio classificar os outros de “primitivos” só porque a tua sociedade te parece mais evoluída. Quais são os critérios pra definir grau de evolução? Se lembro bem do Darwin, todas as espécies existentes hoje no planeta são igualmente evoluídas porque passaram pela seleção natural e são sobreviventes. O que as diferencia é só o seu papel na cadeia alimentar, não seu grau de evolução. No caso das sociedades, será que leis, ordem, modernização ou tecnologia são determinantes de grau de evolução? Bullshit. A coisa é mais complexa do que parece e a intenção de evitar esse pré-julgamento é hoje uma premissa nas ciências sociais. Por exemplo, numa obra do Jack Goody de 1977 (A domesticação do pensamento selvagem) ele cita Parsons, que em 1966 pergunta assim: “Por que então o avanço para a modernização não ocorreu primeiro em nenhuma das civilizações orientais avançadas (e sim no ocidente, referindo-se à Revolução Industrial Inglesa)”? Ora meu caro, perceba que a sua pergunta, em si, já ta carregada de preconceito. Goody aponta em Parsons a oposição binária entre o “nosso” tipo de sociedade e o “deles”. 

Entendido isso, acabei caindo em mais uma pergunta. Repare que os povos dos países colonizados estão invadindo os seus colonizadores. Pelo menos é o que os números de imigração mostram, vocês sabem. Não é pra menos, depois de ter os recursos super explorados pelas metrópoles da época, não restou muita alternativa às ex-colônias senão ir buscar essa riqueza de volta, hoje em forma de emprego e melhores salários. Pois bem, eu pergunto com base no exemplo do que eu presencio com tantos imigrantes legais em Londres, que passaram a ser parte da identidade britânica e sentem-se em casa: “eles” estão se tornando “nós”? Eu que sempre me considerei imersa em cultura ocidental venho pra Londres, a capital mundial do ocidente, e sou recebida pelos indianos (!) na terra deles (!!!). Deles? What-the-hell? Então esse olhar ocidental sobre o mundo, de raízes no pensamento iluminista, vai deixar de ser unilateral? Que efeito isso tem na cabeça e no comportamento dos ex-donos do mundo, dos ex-impérios? A soberania norte-americana ta dando lugar ao potencial chinês. Gosto de pensar também que a internet tem papel fundamental na inversão do olhar. Antigamente tudo o que era veiculado nos meios de comunicação tinha origem em algumas restritas fontes emissoras, que eram os donos dos veículos ou os produtores de conteúdo (trabalhando pra esses mesmos donos). A informação ia dos poucos produtores para uma extensa audiência, portanto. Hoje qualquer integrante da grande massa pode produzir conteúdo via internet (user generated content), como estou fazendo aqui, e eventualmente pode atingir milhões de pessoas. Isso muda tudo. Altera a lógica da opinião pública, dá mais poder ao indivíduo isoladamente, derruba barreiras de tempo e espaço e, por que não dizer, embaralha de vez a direção do olhar de “nós” sobre “eles". ‘Os outros’ passam a ser uma entidade ainda mais subjetiva, quiçá perigosa de se assumir como sendo diferente ou externa a nós. Quem disse que os outros são tão ‘outros’ assim? Só pode ter sido alguém que tenha ficado preso lá no longínquo século vinte... livre-se logo dessa velharia! :-o

Foto.: Flickr

quarta-feira, 1 de julho de 2009

BLAME IT ON THE BOOGIE

Foto: tirada na Rock'n Roll exhibition da revista Rock Archive na Carnaby Street Gallery (Londres) em outubro/2008, por indicação da Ju Decanine

Este post é obviamente dedicado ao Michael Jackson, cuja passagem pelo planeta, acredito, may help us "Heal the world, make it a better place, for you and for me."*


Quando eu estava no colegial ainda respondia que era católica ao ser perguntada sobre minha religião e ficava um pouco impressionada com uma amiga que dizia “eu não sou nada, porque meu pai é judeu e minha mãe católica, então nenhum dos dois impôs a sua crença”. Falava com o maior orgulho, como quem pode mostrar que tem uma certa independência, que pode escolher. Então escolhe, ué, eu pensava. Sem uma é que não dá para ficar, oras.

Tenho fé em muita coisa, a diferença é que não consigo mais enquadrar ou dar nomes às minhas múltiplas crenças (e descrenças) e nem atribuir a certos intermediários o meu único possível contato com o mundo abstrato. Por que é que simplesmente não se pode encontrar ‘Deus’ em outras coisas, menos óbvias e menos fantasiadas de religião? O que impede o ser humano de ver beleza e divindade em coisas corriqueiras, na natureza, nele mesmo? E, melhor ainda, por que eu não posso eleger interlocutores que eu acredito que merecem a minha credibilidade? Gente que tem cara de quem guarda um segredo, que parece saber demais e tenta contar pros outros, mas nem sempre é compreendido. Pois é, por isso é que eu gosto de arte. Eu vejo na arte um bocado de coisa ‘divina’, vejo a superação do humano, a conexão com o ‘outro lado’, ou como queira chamar. É isso o que a inspiração significa, não? Você pode até argumentar que talvez eu esteja exagerando um bocado e rebater dizendo que não só os artistas são capazes de acessar essa abstração toda. A crítica é válida, existem outras formas de se conectar com mundo não-físico (matemática, filosofia, meditação, que tal?). “Ta legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim” **. No caso da música, por exemplo. Você há de convir que mesmo quem não produz nenhum tipo de arte, nem um origamizinho que seja, necessariamente a consome. Por isso ela constrói meu melhor argumento. Se você concordar pelo menos com isso pode continuar lendo.

Muitas vezes, mesmo não entendendo nada de partituras, cheguei a pensar que a combinação de notas musicais pudesse beirar a mágica ou, pra combinar com o assunto, beirar o divino. Ou que é de fato algo divino mesmo. Eu não toco nada, larguei muito cedo as aulas de violão contra a vontade do meu pai, que avisou "se há algo de que me arrependi na vida foi não ter aprendido um instrumento". Mas pretendo aprender, a partir de agora. Que sejam o pandeiro e uma pick-up de DJ, de alguma forma vou ter que me envolver com música mais do que simplesmente aplaudi-la (ta aí mais um projeto pessoal que Londres me ensinou a buscar). Meu caso de amor com a música justifica tentar defendê-la como a mais divina de todas as artes. Seus compositores, intérpretes e instrumentistas, nesse contexto, poderiam então ser chamados de mestres, vou me referir a eles assim. Se você conseguir enxergar Jesus Cristo como um grande comunicador e um cara que sacou que a divindade está no humano (“somos todos filhos do mesmo Pai”), por que não dar crédito a outros mestres, tão humanos quanto ele, e tão capazes de criar quanto Ele?

Caramba, Bethoven. Quem explica um fenômeno desse? Um cara que sente música, que não escuta. Não deve haver melhor exemplo de inspiração que o dele. Veja o John Lennon, num outro contexto, em sua fase solo. Pra mim era uma espécie de ser do outro mundo, em passagem breve pelo planetinha e com pouca paciência, mas uma missão importante: provocar auto-reflexão num país que era muito seguro de si e que tinha mania de impor regras ao mundo. Quarenta anos depois é que se vê algum efeito do seu recado, a escolha do Obama ta aí pra provar. Outro dia eu estava na biblioteca estudando, meio desesperada em véspera de prova, sem muito tempo pra ler tudo o que deveria, mas mesmo assim me rendendo ao sono, que era inevitável. A consciência, com pressa, brigava com o corpo, já exausto. Estava de verdade quase dormindo em cima do livro quando, pelo fone de ouvido, levei um chacoalhão: “Time is on my side”. Era o Mick Jagger... “yes it is” ele insistiu! Dei um sorriso de canto de boca, acordei e voltei a ler. Quer dizer, voltei a pensar na vida. Esses caras estão me dando informação o tempo todo, estão há séculos trazendo pro plano mundano recados preciosos de como se deve levar a vida, o que dá certo e o que não dá, entregando o caminho das pedras. Não dá pra só colecionar CDs ou chacoalhar o esqueleto em baladas noite a fora. A Elis Regina, pensa bem. Ta pra nascer cantora que coloque tão evidente tristeza na interpretação das canções. Ela cantando “Atrás da Porta”, do Chico, é uma cena inesquecível da minha infância (em videotape, que fique claro). Obviamente não era exemplo de mãe, errou pra caramba, mas deu um monte de recado nesse meio tempo. Parece que a Pimentinha sentia as dores do mundo enquanto dava conta da sua arte. Talvez só Edith Piaf fizesse coisa parecida, embora essa não chorasse no palco e sim nas entrelinhas melódicas. Sofreu como um cão, mas fez questão de reforçar até o fim “non, je ne regrette rien” (eu não me arrependo!). Uma bela lição de comportamento pra quem vive de passado e tem o mau hábito de remoer os erros. Agora, veja o Paulinho da Viola, levando em conta que o samba é, por definição, alegre e triste ao mesmo tempo. Paulinho escuto tanto quando to muito feliz como quando to de bode e ele parece me causar efeito nos dois momentos. “Ame.
Seja como for.
Sem medo de sofrer.
Pintou desilusão,
não tenha medo não,
o tempo poderá lhe dizer.
Que tudo,
traz alguma dor.
E o bem de revelar que tal felicidade, sempre tão fugaz, a gente tem que conquistar” (Ame). Bota um ritmo de tango aí e você entra em depressão, mas deixa o samba no lugar e vai ver que dá pra pular carnaval. Ah, Tom e Vinícius. O primeiro era tão bem resolvido que nem sei o que veio fazer na Terra, só pode ter vindo de férias merecidas para o Rio de Janeiro paradisíaco dos anos dourados. “A felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar. Voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar” (A Felicidade). Quem precisa de filosofia quando a melhor explicação para a efemeridade da tal felicidade ta entregue de bandeja, em uma única estrofe? Aliás, vida acadêmica pra quê, se dá pra compreender o mundo prestando atenção a alguém como Vinícius. Esse largou a diplomacia não foi à toa. “Coitado do homem que cai no canto de Ossanha traidor, coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor” (Canto de Ossanha). O maior mulherengo da sua geração, ele próprio, admitindo que sabe onde tem perdição mas mesmo assim paga pra ver. Lição número 1 da cartilha de como entender os homens. Pra quê manter um cara desses a serviço do Itamaraty? Que desperdício. Do Chico Buarque então, o meu favorito, não posso citar nenhuma ou teria que citar todas, absolutamente todas. Vou lembrar apenas a minha frase favoritíssima, a melhor explicação do que só quem é brasileiro entende: "E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval" (Vai Passar). Adoro, é a redenção dos pecados pra todo e qualquer mortal, sem preconceito, o direito ao carnaval! E nem precisa nascer em berço de ouro pra ter credibilidade como o Chico, veja o caso do Jorge Ben e do Tim Maia, que, diziam, passavam mais tempo fora de si que em plena consciência dos atos. Eles mesmos poderiam despertar em você respostas que dez anos de terapia não resolveriam. Duvido que alguém não altere seu estado de espírito ao som de ‘Taj Mahal’ e ‘Mas que nada’, mesmo que as letras não sejam tão obviamente profundas. E o Tim Maia até que deu um recado bem direto, avisou: “Se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito pra contar, dizer que aprendi” (Azul da Cor do Mar). Pronto, meu argumento encontrou uma prova.

Eu poderia citar milhões de exemplos aqui, mas você vai querer fazer esse exercício sozinho, e com as suas músicas favoritas. Se até aqui eu ainda não tiver te convencido vou usar minha última carta: repare que música é uma das raras coisa no mundo que tem unanimidade na preferência das pessoas. Já ouviu falar de alguém que tenha declarado não gostar tanto assim de música? Então, a teoria se aplica a toda a população mundial, eu arriscaria dizer. Por isso, se você perceber que é incondicionalmente feliz nos minutos em que dura uma canção, que abandona a coordenação motora em pista de dança, que dobra sua velocidade de corrida escutando seu iPod na academia, que perde a voz em show de rock ou faz milagre com os pés quando toca aquele samba, você não ta louco. Você ta entendendo o recado. "Se eu sou muito louco por eu ser feliz, mais louco é quem me diz" ***. Então, just “Blame it on the boogie” ****, como fez o, agora saudoso, Michael, e curta o seu momento divino.

Aquele abraço.*****

P.S.: A Ju avisou que post com mais de 3 parágrafos tem que evitar porque fica com cara de artigo, mas é que foi difícil resistir à música dessa vez. Desculpaê.

* Michael Jackson, 'Heal the World'

** Paulinho da Viola, 'Argumento'

*** Raul Seixas, 'Balada do Louco'

**** Michael Jackson, 'Blame it on the Boogie'

***** Gilberto Gil, 'Aquele Abraço', uma contribuição da Paula Valério pra fechar com chave de ouro.


terça-feira, 2 de junho de 2009

PAREI


A vida é frágil demais e curta. Reclamar simplesmente não vale à pena. Nunca. 

Foto: Flickr

segunda-feira, 1 de junho de 2009

TIME-SPACE COMPRESSION


Dizem por aí que o mundo está acelerado. Que as coisas estão acontecendo com mais frequência e intensidade (e a culpa parece ser da dobradinha tecnologia-consumo, mas isso não vem ao caso agora). Pode parecer ruim na hora que rola, mas eu tendo a achar que no fim das contas o resultado tem sua razão (positiva) de ser. Por exemplo, se você embarca em alguma parada meio errada você deve descobrir rapidinho que aquilo ali não vai dar certo porque as evidências debruçam, se jogam, se esfregam praticamente no seu nariz. Não assuste, agradeça. Um amor 'errado', por exemplo, logo se revela problema e vc, em vez de ficar 1 mês iludido, fica 1 semana. Se vc tem essa sensação de que a aceleração da velocidade ta aumentando exponencialmente, meu amigo, saiba que não está sozinho. Nas ciências sociais o termo atende pelo nome de time-space compression* e aparece principalmente nas obras sobre globalização e pós-modernidade. É claro que eu to usando o termo aqui de forma bem particular, os acadêmicos achariam tudo isso bullshit. Mas minha preocupação não é científica, é bem "ordinary" mesmo. Por mais esotericamente brega que esse pensamento possa parecer, duvido que coisa assim nunca tenha passado pela sua cabeça. Se vc é de carne, osso e vive no Planeta Terra, vc tá na dança também. Não dá pra pular de fase como no videogame. Não dá pra reclamar pro chefe, pedir ajuda pros universitários e não dá pra usar o pause. Tampouco dá pra pedir pra sair. Tem que encarar o que vem, tem que caprichar na autoconfiança e tem que ver o lado bom do que à primeira vista possa lhe parecer imensa bagunça. Os antropólogos interessados em estudar a memória humana deixaram registrado que ela é por definição a ligação entre passado, presente e futuro (G. Cohen, 1989). Ao mesmo tempo em que ela estoca informação passada, ela também monitora a saída de referências úteis pra se usar no presente e constrói planos futuros. Penso que essa sensação de "aceleração do tempo" pode ser útil pra gente estocar um bando de coisas e usá-las mais e melhor quando da necessidade de fazer os próximos planos. Ou seja, a razão pra tal densidade emocional deve ter ligação coerente com o uso que vc vai fazer disso em um futuro que tem anunciado que vai chegar mais rápido daqui pra frente. Portanto, companheiro, da próxima vez em que vier uma bola quadrada, não perde tempo, não quebra a cabeça tentando aparar as arestas não. Mata no peito e chuta pro gol, quadrada mesmo.

*David Harvey, The condition of postmodernity

quinta-feira, 28 de maio de 2009

INEDITISMO


Depois do post anterior preciso admitir que este carrega certa contradição. Aprendi com um daqueles professores que se admira e venera, na faculdade, numa matéria optativa que tive a sorte de escolher: uma topada de joelho na quina da cama todo dia e você perde a perna! O inédito é bom, é bem-vindo, dá uma sacudida na gente, faz ficar alerta, ta ligado com a emoção e é o que dá o tempero na vida. Você procura por ineditismo quando escolhe seu destino de férias ou quando pede um prato diferente do menu. Ou quando decide parar de trabalhar pra fazer um mestrado, numa coisa que vc nunca estudou, numa língua que vc não domina e num país que vc não conhece direito. Então o inédito precisa ter uma certa aura de raridade, ele é pouco freqüente por definição, oras.

Sabem aquela formulinha da televisão que fica insistindo em te fazer crer que vale à pena ver mais do mesmo? “Pela primeira vez na televisão” ou “Inédito no Domingão do Faustão” (o que pode ser ainda inédito no Domingão do Faustão, peloamor?). Pois é, estão usando a velha e barata fórmula do ineditismo pra tentar capturar a sua atenção pra algo que já virou mais que previsível. Mas funciona.

Ando sentindo certa overdose do inédito. Estar aqui vivendo uma experiência que fica confinada em um único ano, com alta densidade de diferentes emoções, dá a sensação de que o dia seguinte é sempre  o primeiro de alguma coisa. Agora então que ta chegando o verão e terminando a LSE, ta rolando uma alta freqüência de adeus. Tudo vai terminando aos poucos, todo dia, um adeus por dia, uma pessoa por semana. É uma sensação infinita de queda de montanha russa e parece que o fôlego não vai dar.

Acho que eu quero o conforto da minha rotina de volta, nunca achei que fosse dizer isso. Quero a vida cotidiana da qual a gente tanto reclama. Quero fazer o caminho do trabalho de olho fechado, ligar o rádio e encontrar percussão com o ronco da cuíca, pedir em padaria carioca um "minas quente com suco de laranja, por favor" e quero a certeza de que meus amigos vão estar às 20h em algum bar ali da Vila Madalena, tomando cerveja de garrafa em copinho de boteco. Quero mensagem da Nanda no celular domingo de manhã "vem tomar sol aqui" e da Fabi avisando "to no clube". Sei que depois de 1 ano de rotina eu vou estar subindo pelas paredes de novo, mas nesse momento não quero mais topar com o joelho na quina da minha cama, mas sim acordar tranqüila, abrir minha janela pra deixar entrar o sol e dar bom dia pra quem eu amo.

O frio na barriga é bom, mas tendo demais deve até matar. Amanhã tenho prova, nem deveria estar aqui desviando da quina de novo.

terça-feira, 12 de maio de 2009

SAUDOSISMO EM REVÉS




Gilberto Gil, quando no exílio em Londres, sofreu até que bastante (mas menos que Caetano Veloso, com certeza). Escreveu uma letra muito legal, que aliás eu não entendo como não conhecia, onde foi que eu errei? (fail, bad fail girl) Na letra, o pensamento mais brilhante pra mim é este: "Hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário pra voltar". Pronto, tudo o que importa tá aí.

'Back in Bahia' no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=msknQAdP0DI

Estranhamente, não sei se é o verão se aproximando ou se são as provas anunciando o fim da experiência na LSE, já estou com saudade de Londres. Mesmo tendo sido tão saudosista em relação ao Brasil, todo o tempo. Será que existe algo como 'exílio por opção'? E tinham me prevenido que seria exatamente assim. Aliás, não há nada mais previsível do que essa história de passar 1 ano fora, todo mundo relata tintim por tintim o que vai ser sua vida, em que ordem, com quais emoções.

Dito e feito. Que saudade. Semana que vem tem despedida de um amigo e em outubro vai ter a minha. Difícil. Mas o bacana é que aprendi a valorizar a minha terra como nunca. O Brasil é foda. Eu gosto de dizer, sem quotations por que essa frase é mesmo minha: quem vai morar fora e não volta é porque não entendeu o Brasil ainda, não sacou "qual é" a desse lugar incrível. To indo tomar uma pint de Guiness no pub da esquina e já volto.

Saravá!

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A INSUSTENTÁVEL INVISIBILIDADE DO SER



Uma das coisas que tenho observado nesse meu período fora de casa (leia-se: do Brasil, de perto da minha família e da minha rotina paulistana de bom salário e ótimo estilo de vida) é como as pessoas se relacionam (ou não se relacionam) umas com as outras no dia-a-dia desta cidade grande, caótica e multicultural que é Londres.

Deve ser porque aqui eu ando mais a pé, pego mais transporte público e interajo mais com desconhecidos na rua, do que eu eu estava habituada a fazer em Sampa, de dentro do meu carro e do conforto da minha vida que ia 'muito bem, obrigada'. Deve ser também porque aqui eu trabalho casualmente em eventos que acontecem num museu importante da cidade, servindo bebida, enchendo copo de vinho e carregando bandeja, onde pela primeira vez me vejo do outro lado da cena: não como a executiva que vai a conferências, mas como a garçonete que serve a água pras executivas. Essa é uma ocupação em que estou definitivamente coadjuvante na cena. Aliás, nem coadjuvante, porque se isso fosse uma peça de teatro eu estaria mais pra assistente de palco no back stage.

Bom, o que eu quero mesmo contar não é como me tornei invisível pras pessoas nessas ocasiões em que sou 'garçonete' - pessoas que estão interagindo entre si e não vão prestar atenção aos membros do 'staff', naturalmente - mas sim em como uma reação inesperada de um 'cliente', um sorriso, um 'obrigado' sincero ou até mesmo uma puxada de papo fazem toda a diferença na vida dos invisíveis. Outro dia escutei 'querida, você deve estar treinando algum malabarismo pra conseguir carregar essa bandeja com tudo isso, não?" (sim, pasmem, uma senhorinha no café do British Museum um dia puxou esse papo comigo, olhando nos olhos, imagina se agora eu não adoro velhinha inglesa). Chegamos até o ponto em que contei que na verdade estou em Londres pra fazer mestrado e esse trabalho é um bico. Não sei por quê, mas eu meio que quis me valorizar dando a entender que não sou mais uma imigrante desesperada pra ganhar um salário básico fora do meu país, mas sim que eu tinha nível suficiente pra conversar com ela de igual pra igual ou talvez ainda com mais competência, meio que querendo defender o meu orgulho, sabe...rs. Dentro de mim tinha uma vontade de gritar "OLHA, EU TO AQUI E SOU TÃO BOA OU MELHOR DO QUE VOCÊEEES" enquanto eu limpava a mesa e observava as famílias que estavam curtindo um domingo de lazer, como eu e minha família tantas vezes fizemos. Engraçado, no Brasil a gente sempre evita contar muita vantagem diante das pessoas porque tem tanta gente em pior situação que você até se sente mal de dar a entender que mora nos Jardins (to sendo genérica), dirige um carro zero e fez uma boa faculdade.

Enfim, a razão pra eu contar toda essa história é que tem um filminho que minha mãe mandou e adorei, feito a partir de um celular, que aborda esse tema das pessoas invisíveis mas em muito pior situação, como vocês vão ver (em Nova Iorque e Sidney). Ele venceu o festival Tropfest de curtas metragens, na edição do ano passado em NY, e teve orçamento de 40 dólares!

Fico aqui pensando: até que ponto nossas vidas estão no modo automático pra gente deixar esse estímulo visual passar batido, pra gente se acostumar com a anomalia como se ela já fosse parte aceitável desse organismo complexo que é uma cidade. Isso numa época em que todo mundo tá sendo obrigado a rever seus valores, o capitalismo, o consumo, o estilo de vida, as escolhas, etc, pra que o mundo sobreviva e, antes mesmo, pra que a humanidade sobreviva. Parece-me que no contexto desesperado da nossa tentativa de salvar o planeta, que envolve a busca por uma realidade sustentável, passa a ser insustentável a nossa indiferença a essas pessoas.

A intenção não é provocar choro através de trilha sonora melosa, mas fazer refletir sobre o que estamos deixando passar batido pelos nossos olhos, porque a gente olha mas não vê muita coisa!

Título: "Mankind is no island". Endereço temporário no Youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=ZrDxe9gK8Gk

Contribuições:
- minha amada mãe Eliane que me mandou o link para o filme
- meu querido amigo, ex-pupilo e eterno agente inspirador André Oliveira, que lembrou da existência do trabalho desse cara da USP sobre 'os invisíveis' (aquele estudante que foi gari por alguns dias e acabou escrevendo a tese de mestrado dele sobre o assunto) Gente Invisível
- minha amiga Mari Rudge, por uma outra bela referência sobre invisibilidade: O Homem Invisível

terça-feira, 31 de março de 2009

DE VOLTA PARA O FUTURO


Março merece um post. Eu faço aniversário em março. E é o mês que começa na ressaca de carnaval, não muito justo pra ele. Também cantaram por aí que "são as águas de março fechando o verão" * que dão o tom para esse mês. Hm... o Tom Jobim ta meio fora de contexto aqui em Londres. Pela primeira vez meu aniversário caiu no inverno, não teve nenhuma tempestade e isso é um tanto peculiar para uma pessoa carnavalesca como eu. Na verdade, não poderia reclamar porque o inverno até que tem uma vantagem, ele precede a primavera, e a primavera da Europa parece ser muito mais legal que o verão. Ela traz flores e novidade. A moda mais esperada entra com a primavera. As pessoas mudam de humor e de comportamento na rua, por causa da primavera. Isso é tão marcante que eu resolvi guardar em março um espaço nesse blog, mas na verdade ele foi escrito em abril. Típico da minha pessoa planejar esse tipo de coisa, vc vai dizer. Eu sei, mas é que dentro de mim março parecia mesmo merecer a devida atenção, ele não podia ser um buraco, uma ausência, um lapso bem no meu bloguinho! Ta explicado, né? 

 

Bom, o que vcs vão ler aí pela frente começou motivado pelas cores da estação (não as flores, mas das roupas que estão invadindo as lojas) e terminou interrompido por uma manifestação. Foi certamente direcionado pras mulheres na minha cabeça e tem a despreocupação literária de um e-mail. Lá vai:

 

De repente me deu uma vontade de esquecer um pouco a vida acadêmica e voltar pro mundo da futilidade. Não sei por que, lembrei das minhas amigas, irmã, mãe e primas...rs. Deixa eu contar... a moda aqui tá toda fluorescente.

Sabe a sua caixa de caneta marca texto, que tem rosa, laranja, amarelo, verde e azul? Pois então, é isso que a primavera trouxe pro look londrino e não dou muito tempo pras ruas estarem enfestadas dessas cores. Se você fosse pensar nos anos 80 e eu te perguntasse qual a primeira pessoa famosa que vem à sua cabeça, acompanhada de um estilo marcante da década (tanto em cores quanto em atitude)? Fiz isso comigo mesma (tente me imaginar me perguntando isso) e deu... CINDY LAUPER! Sim, ela é perfeita pra ilustrar o que to querendo dizer, então pense nela agora. Não é novidade que a moda se alimenta de passado, já estivemos em todas as décadas mais de uma vez, desde o fim do século XX. O mais louco foi eu me dar conta de que, mesmo pagando uma de "não sou influenciável, não compro coisa que tá na moda" eu tenho que admitir que viajar no tempo é irresistível!!! Hoje mesmo comprei uma camiseta laranja... mas calma! (ela é listrada com cinza, reveza a sua cafonice com a sobriedade de uma cor quase-morta, portanto ainda não to louca). A Paka Lolo é que ia se dar bem se ainda existisse, viu? Isso já chegou aí? Não vale responder que a idéia da Ponte Estaiada em São Paulo foi concebida com base em influências de marca-texto amarelo-limão (nhé).  Eu e minha prima tínhamos uma fantasia favorita que a gente definia dizendo "é de roqueira!" Consistia na sobreposição de duas camisetas tamanho G, uma roxa e outra verde-limão, acompanhadas de uma faixa trançada que servia tanto pra cintura quanto pro cabelo. Genial! Até isso voltou, impressionante como a moda é cíclica (o que não é novidade mas sempre consegue surpreender). Por exemplo, uma coisa que eu apostei comigo mesma que nunca - nunquinha mesmo - iria voltar é o topete das meninas. Sim, to-pe-teee, ele voltou! Aquele no fim dos 80 e início dos 90 (eu na pré-adolescência), quando as meninas de madeixas lisas empurravam o cabelo da metade da cabeça pra frente e as de madeixas crespas improvisavam empurrando só a franja mesmo e prendendo com uma fivelinha. Argh! Mais feio que anos 80 (já que eles até têm seu charme) são os inexpressivos 90, me desculpem. OK, vamos dar à influência de Amy Winehouse a devida importância porque aqui em Londres a cópia do look dela é nítida, com direito a laço de fita no cabelo, vestido de pin-ups e até pinta forjada. Mas daí a evoluir de uma cópia de Amy para uma nostalgia topeteira é demais pra minha capacidade de adaptação e contemplação do "novo".

Bom, fora isso ta rolando hoje (01/04/2009) uma manifestação gigante contra o G20 aqui do lado de casa, vcs devem saber. Moro a 1 estação do centro financeiro de Londres. Tem um helicóptero mala que não pára de sobrevoar a minha casa e tirar a minha concentração dos estudos (por isso vim pra internet, ieeei). Passei lá perto à tarde quando voltava de Notting Hill (aliás, tarde linda de sol e uns 14 graus, auge do 'verão', todo mundo animado) e fui me aproximando de curiosa. Tinha um monte de gente acampada, dançando, sorrindo e fazendo social. Parecia mais um 'revival' de woodstock bem ao estilo 'politizados bonitinhos' do Santa Cruz do que uma manifestação. Isso não é uma crítica, eu achei legal. Penso que o sentido de se mobilizar pode ser muito mais simples do que nós pensamos. Não é sobre invadir terras com foice, a la MST, mas sim levantar a bunda da cadeira, parar de fazer o que faz todo dia pra ir apoiar um ideal. É isso, APOIO, presença, mover-se em favor de uma causa. Falando nisso, na Antropologia, por influência do McLuhan, do Boyer e do Appadurai, clama-se que a mídia simboliza ausência. Por ser uma mediação ela pressupõe de primeira que a pessoa não ta presente, ta lá de longe recebendo uma informação massificada... ta aí porque a gente não tem atuação política, é a inércia da poltrona com TV! Voltando à causa, queria só dizer que é bonita, justa e necessária. Devíamos incluir esse tipo de hábito na nossa vidinha urbana classe média-alta. Tudo isso rolando e eu fazendo compras na Oxford Street ao voltar da casa da depiladora em Notting Hill !!! Tsc, tsc, tsc. Por isso que o Brasil não vai pra frente!

* ref.: "Águas de Março", de Antônio Carlos Jobim.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O DIA EM QUE APRENDI A GOSTAR DE NEVE



Quando a melhor perspectiva que você tem pras próximas horas está entre a fronha e o edredom, dificilmente você vai sair da cama em menos de meia hora. Estava eu lá deitada, custando a acreditar que já era de manhã, com esperança de que o despertador nunca tocasse e lutando contra o frio que o aquecedor convidou pra entrar quando terminaram suas duas horinhas de trabalho automático (sempre no meio da madrugada). Entre um sonho e alguns devaneios de consciência, eles começam. São oito em ponto no relógio quando sussurram no meu ouvido Quarteto em Cy e MPB Quatro, revezando o tom de voz na música que eu escolhi pro despertador, na esperança de absorver um pouco de paz e já levantar de bom humor. As vozes femininas engatam “Se todos fossem iguais a você” ao mesmo tempo em que as masculinas vão de “Eu sei que vou te amar”, duas músicas diferentes, ambas do maestro soberano, Antônio Brasileiro (Tom Jobim), numa fusão que nem o melhor DJ na história conseguiria criar. É uma composicão brilhante que contrapõe duas reações opostas do amor: euforia e sofrimento (não sou eu que to dizendo, foi a galera do "Mal do século" que inventou isso). 

Primeiro, o mundo ideal, o paraíso em “Se todos fossem iguais a você que maravilha viver”, “Existiria a verdade”, “Amar sem mentir nem sofrer”, etc, etc...

Mas logo na frase seguinte a outra música, a realidade, a ‘humanidade’: “Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver”, ahaha, essa sim é pra valer!

Então, é ao som dessa dualidade que começa o meu dia. Enrolo pra caramba até me convencer de que preciso mesmo ganhar tempo, afinal, a aula hoje é de Economia (embora meu mestrado seja em Antropologia, muito mais intuitivo) e o fim de semana foi intenso demais pra dar espaço pras páginas sobre Globalização e Migração da Força de Trabalho (!!). Portanto, minha última chance de não passar vergonha durante a aula está nas próximas 3 horas de biblioteca. Enrolo mais um pouco, convencida de que vale ficar driblando a razão, e ensaio um pensamento positivo mandando vibrações pra família, pro Brasil, pra minha casa e praticamente conversando até com Deus. Nesse momento todo tipo de crença tem mais chance comigo, vale tudo pra ficar um pouquinho mais na cama.

Quando começa a ficar ridículo, é sinal de que a razão tá ocupando o espaço dos devaneios e daí pra frente o sangue corre intenso. Acendo a luz, me visto rápido buscando alternativas não-pretas, tento tomar café não em ritmo de bateria, mas de Bossa Nova que é mais suave, escovo os dentes, fecho a mochila e to pronta pra sair. Não sem antes abrir a janela, claro, que não é bem uma janela e sim uma tentativa semi-frustrada de avistar uma fresta de céu morando abaixo do nível do mar, digo, da rua. Mas enfim, afasto a cortina e lá está ela, amontoada com grande classe em postura de balé, a neve! Tinha esquecido que a previsão pra hoje era de neve forte e que isso significaria um dia difícil. Eu tava morrendo de medo do frio que vinha por aí, de escorregar, de ficar de bode com o tempo e, pior, de ficar mais estressada que o povo que estuda economia na minha universidade. Bom, mas como isso não mudaria em nada a minha rotina de LSE, só lembro de pegar a máquina fotográfica, trocar meu sapato por uma bota que tem mais aderência (e salto alto, argh!), e sair no meu ritmo atrasado de sempre.

Opa! Quem disse que dá pra abrir a porta? Já saco a máquina pra registrar esse momento, inédito pra quem só viu neve previsível, de estação de esqui. A caminho do metrô fotografo tudo. Caramba, a rua ta linda. Vou pegar um ônibus pra ter chance de apreciar a paisagem. Dane-se que demora mais, a biblioteca pode esperar e eu leio 2 horas e meia em vez de três. Mas quem disse que tem ônibus? Na estação cruzo com uma amiga da LSE, ensaio passar reto fingindo que não vi, afinal to sempre com pressa e ela também deve estar. Mas, sei lá por que, achei que devia falar “oi”, numa manifestação da minha brasilidade (não sou britânica nem tenho tanta pressa assim, poxa). Ela responde com um sorriso e, enquanto vamos juntas tentar comprar o ticket dela pro interior da Inglaterra, ela me conta “to tentando pegar um trem pra casa, vc viu que cancelaram as aulas por causa da neve?”. What-the-hell, pensei! Depois de todo esse esforço pra sair da cama? Agora eu vou, po! Pelo menos aproveito pra ler muito, pra ler como nunca, o dia inteiro! E me livrar de uma vez dessa culpa de não ter estudado.

Minha viagem dura o dobro, os trens estão todos atrasados e o iPod mais uma vez me acompanhando no humor. Dessa vez não deixei rolar indi, rock nem as velhas companheiras percussões de samba, deixei espaço só pras pérolas clássicas: “Cole Porter”, quem diria em plena segunda feira, “Edith Piaf”, “Ella Fitzgerald” e “Edu Lobo”, to mais pra violino que pra bateria hoje, percebi. Estranhamente, tava rolando uma calma como há bastante tempo eu não via. As pessoas na estação esperavam pacientemente (impressive!) longos 10 minutos pelo trem que geralmente leva meio minuto pra chegar, o da linha Central vermelha. Ninguém se debateu pra entrar, o trem veio vazio (é a vantagem de se morar na primeira estação importante do extremo leste) e eu pude até viajar sentada (em hora de rush matinal)! Acompanhada por piano, baixo, violino e bons pensamentos, fui assim em paz até a estação de Holborn, agora já percebendo que o dia ia ser diferente. Estava refletindo: caramba, como o ritmo da cidade penetra na gente e influencia todas as nossas ações todos os dias! Em Londres isso ainda é mais grave que em São Paulo, eu sinto, porque em Londres as pessoas dizem ‘sorry’ antes mesmo de trombar com você, já que sabem que vão ter que passar empurrando mesmo. Em Londres vc anda a passos rápidos mesmo sem precisar correr. Já em São Paulo você se estressa com aquele trânsito bizarro e a correria também, mas seu corpo não acompanha esse ritmo acelerado (porque lá você fica dentro do carro sentado, escutando Eldorado FM e leva uma vida sedentária), o corpo vai nessa inércia. Sei lá.

Bom, desço em Holborn e a cidade tá ainda mais linda! Ando devagar pra não escorregar e as pessoas em volta também, super cuidadosas, pasmem. Parece domingo numa cidade baiana, todo mundo em ritmo de ‘passeio’. Fotografo tudo, nem parece que faço aquele caminho todos os dias. Mudo um pouco o trajeto porque ali do lado da avenida tem um parque, vou por ele. Descubro que uma bola de neve dura bastante tempo intacta na minha mão e que é uma delícia tentar limpar o vidro dos carros, tá tudo ‘fofo’. Muita gente em volta tira foto. Perto da biblioteca uma turma de chineses (ou coreanos, eu não soube diferenciar o idioma, desculpa) faz bolas gigantes e sai com elas rolando. Exploro um pouquinho mais as possibilidades que a água congelada abriu, faço diferentes formatos de bola, ensaio deixar a câmera apoiada sem congelar para bater foto automática, testo o grau de fofura do gelo em partes diferentes da rua. Mas preciso entrar. Um dia longo de leitura densa tá pela frente e devo aproveitar que não tem aula pra fazer dessa segunda o que costuma ser o meu domingo: livro na frente, chiclete pra driblar o sono e telefone no modo silencioso (mas sempre ligado). Recebo uma mensagem da amiga com quem cruzei na estação “You’re such a good friend, thanks for helping me and please be around”. Entro na biblio, vazia, o recado pelo auto falante é “hoje nossos serviços estão limitados devido ao mau tempo”, pronto vai virar feriado, penso. Regulo de novo o iPod que toca “Se todos fossem iguais a você” combinado com “Eu sei que vou te amar” e procuro logo um computador. Antes de começar a estudar qualquer coisa, eu sei que tenho muito pra escrever e preciso da música pra não entrar no mundo da razão e da Economia tão já. Elas com certeza vão censurar a minha vontade poética e tudo o que eu quiser escrever vai parecer ridículo ao final do texto. Melhor prevenir com música. Pela internet meus amigos já se pronunciam, todo mundo fez um boneco de neve (e mandou a foto, claro). Eu não tenho comigo o fio que descarrega as minhas fotos do caminho, mas tenho no hard disk da memória um punhado de sentimentos que dá pra transferir para o papel.

Tenham um bom dia porque hoje já é feriado!