segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O DIA EM QUE APRENDI A GOSTAR DE NEVE



Quando a melhor perspectiva que você tem pras próximas horas está entre a fronha e o edredom, dificilmente você vai sair da cama em menos de meia hora. Estava eu lá deitada, custando a acreditar que já era de manhã, com esperança de que o despertador nunca tocasse e lutando contra o frio que o aquecedor convidou pra entrar quando terminaram suas duas horinhas de trabalho automático (sempre no meio da madrugada). Entre um sonho e alguns devaneios de consciência, eles começam. São oito em ponto no relógio quando sussurram no meu ouvido Quarteto em Cy e MPB Quatro, revezando o tom de voz na música que eu escolhi pro despertador, na esperança de absorver um pouco de paz e já levantar de bom humor. As vozes femininas engatam “Se todos fossem iguais a você” ao mesmo tempo em que as masculinas vão de “Eu sei que vou te amar”, duas músicas diferentes, ambas do maestro soberano, Antônio Brasileiro (Tom Jobim), numa fusão que nem o melhor DJ na história conseguiria criar. É uma composicão brilhante que contrapõe duas reações opostas do amor: euforia e sofrimento (não sou eu que to dizendo, foi a galera do "Mal do século" que inventou isso). 

Primeiro, o mundo ideal, o paraíso em “Se todos fossem iguais a você que maravilha viver”, “Existiria a verdade”, “Amar sem mentir nem sofrer”, etc, etc...

Mas logo na frase seguinte a outra música, a realidade, a ‘humanidade’: “Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver”, ahaha, essa sim é pra valer!

Então, é ao som dessa dualidade que começa o meu dia. Enrolo pra caramba até me convencer de que preciso mesmo ganhar tempo, afinal, a aula hoje é de Economia (embora meu mestrado seja em Antropologia, muito mais intuitivo) e o fim de semana foi intenso demais pra dar espaço pras páginas sobre Globalização e Migração da Força de Trabalho (!!). Portanto, minha última chance de não passar vergonha durante a aula está nas próximas 3 horas de biblioteca. Enrolo mais um pouco, convencida de que vale ficar driblando a razão, e ensaio um pensamento positivo mandando vibrações pra família, pro Brasil, pra minha casa e praticamente conversando até com Deus. Nesse momento todo tipo de crença tem mais chance comigo, vale tudo pra ficar um pouquinho mais na cama.

Quando começa a ficar ridículo, é sinal de que a razão tá ocupando o espaço dos devaneios e daí pra frente o sangue corre intenso. Acendo a luz, me visto rápido buscando alternativas não-pretas, tento tomar café não em ritmo de bateria, mas de Bossa Nova que é mais suave, escovo os dentes, fecho a mochila e to pronta pra sair. Não sem antes abrir a janela, claro, que não é bem uma janela e sim uma tentativa semi-frustrada de avistar uma fresta de céu morando abaixo do nível do mar, digo, da rua. Mas enfim, afasto a cortina e lá está ela, amontoada com grande classe em postura de balé, a neve! Tinha esquecido que a previsão pra hoje era de neve forte e que isso significaria um dia difícil. Eu tava morrendo de medo do frio que vinha por aí, de escorregar, de ficar de bode com o tempo e, pior, de ficar mais estressada que o povo que estuda economia na minha universidade. Bom, mas como isso não mudaria em nada a minha rotina de LSE, só lembro de pegar a máquina fotográfica, trocar meu sapato por uma bota que tem mais aderência (e salto alto, argh!), e sair no meu ritmo atrasado de sempre.

Opa! Quem disse que dá pra abrir a porta? Já saco a máquina pra registrar esse momento, inédito pra quem só viu neve previsível, de estação de esqui. A caminho do metrô fotografo tudo. Caramba, a rua ta linda. Vou pegar um ônibus pra ter chance de apreciar a paisagem. Dane-se que demora mais, a biblioteca pode esperar e eu leio 2 horas e meia em vez de três. Mas quem disse que tem ônibus? Na estação cruzo com uma amiga da LSE, ensaio passar reto fingindo que não vi, afinal to sempre com pressa e ela também deve estar. Mas, sei lá por que, achei que devia falar “oi”, numa manifestação da minha brasilidade (não sou britânica nem tenho tanta pressa assim, poxa). Ela responde com um sorriso e, enquanto vamos juntas tentar comprar o ticket dela pro interior da Inglaterra, ela me conta “to tentando pegar um trem pra casa, vc viu que cancelaram as aulas por causa da neve?”. What-the-hell, pensei! Depois de todo esse esforço pra sair da cama? Agora eu vou, po! Pelo menos aproveito pra ler muito, pra ler como nunca, o dia inteiro! E me livrar de uma vez dessa culpa de não ter estudado.

Minha viagem dura o dobro, os trens estão todos atrasados e o iPod mais uma vez me acompanhando no humor. Dessa vez não deixei rolar indi, rock nem as velhas companheiras percussões de samba, deixei espaço só pras pérolas clássicas: “Cole Porter”, quem diria em plena segunda feira, “Edith Piaf”, “Ella Fitzgerald” e “Edu Lobo”, to mais pra violino que pra bateria hoje, percebi. Estranhamente, tava rolando uma calma como há bastante tempo eu não via. As pessoas na estação esperavam pacientemente (impressive!) longos 10 minutos pelo trem que geralmente leva meio minuto pra chegar, o da linha Central vermelha. Ninguém se debateu pra entrar, o trem veio vazio (é a vantagem de se morar na primeira estação importante do extremo leste) e eu pude até viajar sentada (em hora de rush matinal)! Acompanhada por piano, baixo, violino e bons pensamentos, fui assim em paz até a estação de Holborn, agora já percebendo que o dia ia ser diferente. Estava refletindo: caramba, como o ritmo da cidade penetra na gente e influencia todas as nossas ações todos os dias! Em Londres isso ainda é mais grave que em São Paulo, eu sinto, porque em Londres as pessoas dizem ‘sorry’ antes mesmo de trombar com você, já que sabem que vão ter que passar empurrando mesmo. Em Londres vc anda a passos rápidos mesmo sem precisar correr. Já em São Paulo você se estressa com aquele trânsito bizarro e a correria também, mas seu corpo não acompanha esse ritmo acelerado (porque lá você fica dentro do carro sentado, escutando Eldorado FM e leva uma vida sedentária), o corpo vai nessa inércia. Sei lá.

Bom, desço em Holborn e a cidade tá ainda mais linda! Ando devagar pra não escorregar e as pessoas em volta também, super cuidadosas, pasmem. Parece domingo numa cidade baiana, todo mundo em ritmo de ‘passeio’. Fotografo tudo, nem parece que faço aquele caminho todos os dias. Mudo um pouco o trajeto porque ali do lado da avenida tem um parque, vou por ele. Descubro que uma bola de neve dura bastante tempo intacta na minha mão e que é uma delícia tentar limpar o vidro dos carros, tá tudo ‘fofo’. Muita gente em volta tira foto. Perto da biblioteca uma turma de chineses (ou coreanos, eu não soube diferenciar o idioma, desculpa) faz bolas gigantes e sai com elas rolando. Exploro um pouquinho mais as possibilidades que a água congelada abriu, faço diferentes formatos de bola, ensaio deixar a câmera apoiada sem congelar para bater foto automática, testo o grau de fofura do gelo em partes diferentes da rua. Mas preciso entrar. Um dia longo de leitura densa tá pela frente e devo aproveitar que não tem aula pra fazer dessa segunda o que costuma ser o meu domingo: livro na frente, chiclete pra driblar o sono e telefone no modo silencioso (mas sempre ligado). Recebo uma mensagem da amiga com quem cruzei na estação “You’re such a good friend, thanks for helping me and please be around”. Entro na biblio, vazia, o recado pelo auto falante é “hoje nossos serviços estão limitados devido ao mau tempo”, pronto vai virar feriado, penso. Regulo de novo o iPod que toca “Se todos fossem iguais a você” combinado com “Eu sei que vou te amar” e procuro logo um computador. Antes de começar a estudar qualquer coisa, eu sei que tenho muito pra escrever e preciso da música pra não entrar no mundo da razão e da Economia tão já. Elas com certeza vão censurar a minha vontade poética e tudo o que eu quiser escrever vai parecer ridículo ao final do texto. Melhor prevenir com música. Pela internet meus amigos já se pronunciam, todo mundo fez um boneco de neve (e mandou a foto, claro). Eu não tenho comigo o fio que descarrega as minhas fotos do caminho, mas tenho no hard disk da memória um punhado de sentimentos que dá pra transferir para o papel.

Tenham um bom dia porque hoje já é feriado!  

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